Como qualquer dinâmica projetiva, o desenho em clínica infantil é uma riquíssima ferramenta de trabalho para qualquer psicólogo. Como bem sabemos, existem angústias e conteúdos do mundo interno do paciente, que de outra forma poderiam não ser possíveis de ser expressos. Por vezes, o temor de reconhecer como seus alguns dos conteúdos mentais, ou o receio de ser tomado por eles, faz com que o sujeito empreenda diversificados mecanismos defensivos, que têm como objetivo a manutenção da sua integridade psíquica, modificando ou mesmo tornando irreconhecíveis, esses mesmos conteúdos (tornando-os assim mais toleráveis).
Naturalmente que este fato lança ao clínico a tarefa de encontrar formas de aceder a esses mesmos conteúdos. O desenho, através das suas personagens (bem como o jogo ou as histórias) pode ser um veículo fundamental no trabalho terapêutico com a criança.
“A criança, ao criar uma distância através das personificações, representa e maneja fantasmas que doutro modo seriam intoleráveis, domina angústias e antecipa projetos, dá sentido e organiza o próprio mundo interior, metaboliza e ordena os estímulos que lhe chegam do mundo exterior (e interior), aprende a dominar fantasmas e impulsos” (Ferro, 1995, pp.87).
As personagens do desenho, podem dar conta de fatos e experiências da realidade externa/ambiental da criança, mas também podem dar conta de partes da sua personalidade ou mesmo de partes da personalidade do psicólogo em relação, ou ainda do funcionamento deste par (Ferro, 1995).
Este ponto de vista, menos frequente, é precisamente aquele que gostaríamos de destacar nesta proposta de reflexão: o desenho não é apenas uma atividade projetiva que nos permite interpretar o mundo interno da criança, mas, também nos comunica, pontualmente, qual o estado na relação terapêutica e qual foi o grau de sucesso ou insucesso das últimas intervenções do psicólogo. “Já não é possível pensar o analista como alguém que decodifica o texto do paciente, fornecendo às escondidas uma conta paralela sobre os significados, mas como um co-autor do tecido narrativo que é construído em sessão com a contribuição criativa de ambos”, Ferro, 1995.
Deste modo, a interpretação do desenho e do seu significado projetivo, não deixando de ser relevante, é apenas um dos objetivos da utilização do desenho em clínica. Sendo o outro, o dar a conhecer ao paciente, que com ele, está uma mente capaz de acolher, transformar e devolver as suas demandas e angústias, de uma forma mais tolerável à sua psique. Nesse sentido, torna-se prioritário que o psicólogo olhe o desenho como uma dinâmica que dá conta do que se está a passar no aqui e agora da relação terapêutica, e não apenas como um mecanismo que lhe permite fazer interpretações e fornecer significados paralelos à díade, como se a sua pessoa não estivesse em causa.
Face a esta forma de olhar o desenho, torna-se evidente que a tentativa de utilizar qualquer esquema que julguemos poder aplicar a todos os desenhos, de todos os nossos paciente (enquanto ferramenta de compreensão das dinâmicas emocionais e relacionais), não mais fará do que diminuir a potencialidade desta ferramenta, conduzindo-nos por uma abordagem rudimentar, básica e pouca profunda acerca da pessoa.
A proposta da Psicanálise contemporânea é olhar o desenho em clínica infantil, não apenas como um instrumento projetivo mas também como um aliado da relação terapêutica, relação a essa que será promotora da retoma do amadurecimento suspenso.
“Qualquer sistema que proporcione uma solução fácil, é por si uma contra-indicação (...)”, Winnicott, 1984, pp.10
Texto elaborado por: Doutora Marta Reis, Psicóloga, Psicanalista e Formadora na ForYourMind.
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